O Estudo Carga Global de Doenças, Lesões e Fatores de Risco (GBD) (Global Burden of Diseases, Injuries, and Risk Factors Study) é uma referência consolidada para medir a saúde, mortalidade e incapacidade, de forma comparável entre mais de 200 países e ao longo do tempo. O GBD integra múltiplas fontes de dados e aplica métodos padronizados para estimar a carga de centenas de doenças e lesões e o impacto de diversos fatores de risco, que vão muito além do álcool (como tabagismo, dieta e hipertensão, obesidade, poluição do ar, entre outros).
O GBD usa um conjunto de métricas complementares para quantificar o ônus em saúde de forma comparável. Para mortalidade, apresenta as contagens de mortes (em milhares). Para morbidade (perdas não letais), utiliza os YLDs (Years Lived with Disability; Anos Vividos com Incapacidade), que estimam quanto tempo a população vive com doenças e limitações, ponderado pela gravidade dos sintomas. Há também os YLLs (Years of Life Lost; Anos de Vida Perdidos por morte prematura), que mensuram quantos anos deixam de ser vividos quando alguém morre antes da expectativa de vida para aquela idade. A métrica-síntese é o DALY (Disability-Adjusted Life Year; em português, Ano de Vida Ajustado por Incapacidade). Esse conjunto permite avaliar, por exemplo, o impacto do álcool tanto em desfechos fatais (cirrose, acidentes) quanto em desfechos não fatais (transtornos por uso de álcool, depressão, lesões), comparando períodos e regiões com o mesmo padrão de medida.
Embora o GBD tenha dados de 1990, a estrutura dos achados mais relevantes focados na mudança percentual de longo prazo em mortalidade e na mudança percentual de morbidade específica do álcool nas fontes dadas utilizou 2000–2023 e 2010–2023, respectivamente, como os períodos de referência.1,2
Em 2023, o transtorno por uso de álcool (TUA) foi responsável por 11,6 milhões de Anos Vividos com Incapacidade (YLDs) (IC: 8,08–16,5), o que corresponde a 1,2% da carga global de incapacidade (IC: 0,9–1,4) e o posicionou na 26ª colocação entre as causas de morbidade. Entre 2010 e 2023, a carga não letal por TUA cresceu 12,6% em números absolutos (IC: 9,6–15,3), enquanto a taxa padronizada por idade de YLDs por 100 mil habitantes caiu 4,9% (IC: −6,7 a −3,1), sugerindo leve redução do risco médio individual apesar do crescimento e do envelhecimento populacional.
No componente fatal, entre 2000 e 2023 os Anos de Vida Perdidos (YLLs) () por TUA diminuíram 8,9% em contagem total, passando de 7.088,2 mil (IC: 6.447,9–7.992,7) para 6.460,2 mil (IC: 5.727,4–7.529,1), e a taxa padronizada por idade de YLLs recuou 39,7% (IC −49,8 a −27,1).
Considerando a carga total em Ano de Vida Ajustado por Incapacidade (DALYs), o consumo excessivo de álcool enquanto fator de risco subiu do 14º lugar em 2010 para o 11º em 2023 no ranking global, refletindo a combinação de mortes e incapacidades atribuíveis ao consumo.
Entre 2000 e 2023, a mortalidade totalmente atribuída ao transtorno por uso de álcool ficou praticamente estável em números absolutos, enquanto caiu de forma importante quando ajustada por idade: o total de mortes variou apenas +0,8% (IC: −14,9 a +19,9), ao passo que a taxa padronizada por idade recuou 36,7% (IC: −46,6 a −24,5). Em outras palavras, embora o crescimento e o envelhecimento populacional mantenham o número de óbitos em patamar semelhante, o risco médio de morrer por TUA, considerado por 100 mil habitantes e ajustado para idade, diminuiu ao longo do período.
As consequências específicas e graves do uso de álcool, como a cirrose e a cardiomiopatia, também foram rastreadas:
Os casos de cirroses atribuíveis ao álcool exibiram caminhos opostos nas duas métricas: entre 2000 e 2023, as mortes totais cresceram 22,6% (IC: +6,3 a +41,5), enquanto a taxa padronizada por idade caiu 29,9% (IC: −39,5 a −19,3). Em termos simples, há mais óbitos em números absolutos, efeito do crescimento e do envelhecimento populacional, mas o risco médio por pessoa, ajustado para idade, diminuiu.
Na cardiomiopatia alcoólica, a melhora aparece nas duas frentes: as mortes totais reduziram 18,6% (IC: −28,8 a −7,4) e a taxa padronizada por idade teve queda ainda mais acentuada, de 52,3% (IC: −58,3 a −45,7), sugerindo redução consistente do risco ao longo do período.
Já no câncer de fígado atribuível ao álcool, o quadro é mais preocupante: as mortes totais aumentaram 86,1% (IC: +58,3 a +116,7), e a taxa padronizada por idade ficou praticamente estável (variação de +1,3%; IC: −13,8 a +17,7). Ou seja, o ônus absoluto cresceu muito, e não houve queda clara do risco médio, reforçando a necessidade de prevenção e diagnóstico precoce.
Em síntese, apesar da queda nas taxas ajustadas por idade, o ônus absoluto ligado ao álcool continua a crescer com o envelhecimento e o aumento populacional. O caminho é claro: reduzir o uso nocivo, ampliar triagem e tratamento e monitorar resultados com métricas, como as utilizadas no GBD.