Estudo finlandês mostra como o uso abusivo permanece alto no país a despeito da queda média do uso e os desafios para transformar uma cultura de consumo de álcool.
É sabido que alguns padrões de consumo de álcool se mostram mais nocivos que outros. O consumo abusivo, ou BPE, caracterizado por ser um padrão mais voltado à intoxicação, está associado a mais de 200 tipos de doenças, ao passo que o consumo moderado, principalmente junto às refeições, apresenta risco significativamente mais baixo de problemas. Alguns países, como os de cultura mediterrânea, se caracterizam pela grande prevalência de consumo diário de álcool (o que reflete em uma alta prevalência de consumo per capita, que é uma média do consumo total das pessoas com 15 anos ou mais), principalmente para acompanhar refeições (por exemplo, Espanha, Itália, Portugal), mas por níveis relativamente baixos de beber pesado episódico1. Isso significa que, nestes países, bebe-se com frequência, mas pouco por vez, o que é considerado menos nocivo. Já outros países, como a Romênia, apresentam uma baixa frequência de consumo, porém, uma alta prevalência de uso abusivo1. Como os padrões de uso estão intrinsecamente ligados à cultura de um país, é importante observar atentamente os hábitos de consumo da população.
As mudanças no consumo de álcool de uma sociedade podem ter várias causas, decorrentes de mudanças sociais, culturais e econômicas mais amplas ou de mudanças normativas ou políticas específicas relacionadas ao álcool. As mudanças podem se materializar em novos grupos de bebedores, novas situações de consumo ou padrões de consumo alterados. Esses aspectos precisam ser examinados para se entender a dinâmica das mudanças no consumo de álcool e as implicações que podem ter para o futuro.
Um estudo2 examinou as mudanças no consumo de álcool na Finlândia entre 2000 e 2016, analisando as alterações por grupo etário, gênero e nível de consumo. O objetivo foi entender como o consumo de álcool se distribui na população e como, ao longo do tempo, os padrões de consumo vão se modificando. Especialmente, entender se as mudanças no nível geral de consumo (consumo per capita) alteram sua distribuição, ou seja, se o consumo leve, moderado e pesado muda igualmente, ou se a forma da distribuição do consumo de álcool permanece inalterada. Além disso, o estudo também pretendeu investigar se havia evidência de uma mudança para um estilo de consumo mais mediterrâneo quando o consumo per capita diminuiu no país, ou seja, se o consumo estaria sendo feito de forma mais distribuída, em mais ocasiões com menos quantidade de álcool por ocasião. A principal fonte de dados são as pesquisas Finnish Drinking Habits Survey (FDHS) realizadas em 2000, 2008 e 2016. Os participantes constituíram uma amostra aleatória de residentes finlandeses com idade entre 15 e 69 anos.
Os resultados mostraram que o aumento do consumo per capita no início dos anos 2000 foi impulsionado por um aumento na frequência de consumo entre idosos e no aumento de episódios de consumo excessivo (BPE) entre as mulheres. Neste período, a população mais velha se aproximou da mais jovem, tanto na frequência de consumo quanto nos níveis de BPE.
Após 2008, houve uma redução do consumo per capita, acompanhada por uma diminuição na frequência de consumo regular e de BPE, especialmente entre homens e jovens. Essa mudança nos padrões foi acompanhada de redução nas taxas de mortalidade, sendo que mortes por ferimentos com intoxicação alcoólica como causa contributiva diminuíram de quase 1000 mortes em 2006 para cerca de 550 em 2015 (de acordo com Statistics Finland). Outros fatores podem estar em jogo; por exemplo, a melhoria do tratamento do alcoolismo ou estradas mais seguras, mas, segundo os autores do estudo, a redução do BPE muito provavelmente contribuiu para este resultado positivo.
Muitos atores políticos têm o desejo de mudar a cultura do consumo de álcool, para reduzir os problemas da intoxicação, e criar uma “cultura da temperança” ou da “moderação”. No caso da Finlândia, não há evidências de que a redução do BPE ocorreu por conta dessa mudança de estilo de consumo. O presente estudo mostrou, outrossim, que as quantidades máximas consumidas num dia por homens finlandeses são ainda muito elevadas, e o uso abusivo continua a ser um problema a ser enfrentado. Além disso, mesmo que a maior diminuição do BPE tenha sido observada justamente entre homens jovens, os resultados mostraram que este padrão continua a ser mais prevalente neste grupo. Desse modo, ainda que a diminuição do consumo tenha gerado bons resultados do ponto de vista da saúde pública, os autores concluem que resta muito a ser feito, e que políticas públicas são necessárias para combater o consumo excessivo de álcool na Finlândia.
O Brasil também observou uma redução do consumo per capita de álcool na última década, mas, ao contrário da Finlândia, não houve diminuição conjunta do uso abusivo, tampouco evidências sólidas de mudanças nos padrões de consumo da população rumo a um estilo mais ponderado. Isto nos faz refletir sobre a importância e os desafios de se promover uma cultura de consumo menos nociva, que colabore para a diminuição do abuso, bem como sobre a necessidade de políticas públicas específicas para este problema.
A relação entre o consumo de álcool e o desenvolvimento de transtornos relacionados apresenta um panorama surpreendente. Contrariando o que se poderia esperar, dados globais de 2020 revelam que países com maior consumo médio per capita nem sempre registram as maiores taxas de transtornos por uso de álcool. O Brasil, com consumo de 7,7 litros per capita e prevalência de 2,5% de transtornos, exemplifica como os padrões de consumo e o acesso ao tratamento podem ser mais determinantes que o volume total ingerido.
Os países que mais bebem em média são os que apresentam maiores problemas relacionados ao uso de álcool? Dados do Global Burden of Disease mostram que não. Países europeus como França e Reino Unido, com consumo superior a 10 litros per capita anuais, apresentam taxas de transtornos comparáveis às do Brasil, que consome significativamente menos, ou seja, 7,7 litros per capita anuais. Em contrapartida, nações como Guatemala, Cazaquistão e Mongólia registram prevalências significativamente mais altas de transtornos, mesmo com consumos médios inferiores moderados.
O gráfico abaixo evidencia a ausência de correlação entre o consumo médio de álcool (consumo per capita) e a prevalência de transtornos relacionados ao uso da substância.
Figura 1. Proporção da população com transtorno do uso de álcool vs. consumo médio de álcool, 2020
Padrões de consumo: o verdadeiro fator de risco
O que explica essa aparente contradição é que o padrão de consumo tende a exercer maior influência no desenvolvimento de transtornos do que o volume total. O consumo de grandes quantidades concentrado em ocasiões específicas ("binge drinking") apresenta potencial consideravelmente maior para causar problemas, incluindo a dependência, do que o consumo moderado distribuído ao longo do tempo, mesmo quando o volume total anual é semelhante.
No Brasil, estudos epidemiológicos identificaram uma prevalência significativa do padrão de consumo intenso, particularmente entre jovens adultos e em contextos festivos, o que contribui para a taxa de transtornos observada. Segundo os dados mais recentes do Ministério da Saúde, aproximadamente 20% dos brasileiros que consomem álcool adotam o padrão de consumo considerado abusivo.
Acesso ao diagnóstico e tratamento
Outro fator determinante para compreender as disparidades entre os países é a capacidade dos sistemas de saúde para diagnosticar adequadamente e oferecer tratamento para transtornos relacionados ao álcool. Países com sistemas de saúde mais estruturados podem apresentar dados mais precisos sobre a prevalência desses transtornos.
No Brasil, apesar dos avanços do Sistema Único de Saúde (SUS) e da implementação dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD), ainda existem desafios consideráveis na cobertura e qualidade dos serviços especializados, especialmente em regiões mais remotas e vulneráveis. Estima-se que menos de 10% das pessoas com transtornos relacionados ao álcool recebam tratamento adequado.
Fatores socioculturais e vulnerabilidades
A influência de fatores socioculturais é evidente quando analisamos diferentes tradições relacionadas ao consumo de álcool. Em países mediterrâneos, onde o consumo está tradicionalmente integrado às refeições familiares, observam-se menores taxas de transtornos em comparação com culturas onde predomina o consumo recreativo intenso.
Estudos científicos destacam que, além do padrão de consumo, elementos como idade de início, contexto social e fatores de vulnerabilidade socioeconômica influenciam significativamente o desenvolvimento de transtornos por uso de álcool, independentemente do volume total consumido. A Organização Mundial da Saúde, em seu relatório global sobre álcool e saúde de 2018, confirma que a idade precoce de início do consumo e condições socioeconômicas desfavoráveis estão entre os principais fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos relacionados ao álcool, além dos padrões de consumo de alto risco.
Implicações para políticas públicas
A ausência de correlação direta entre volume de consumo e prevalência de transtornos tem implicações importantes para o desenvolvimento de políticas públicas eficazes. Intervenções focadas exclusivamente na redução do volume total podem não atingir os resultados esperados na diminuição dos transtornos.
Para o Brasil, os dados reforçam a necessidade de políticas que considerem as particularidades dos padrões de consumo nacionais, com ênfase na redução do consumo intenso e na promoção de hábitos mais moderados. Campanhas de conscientização sobre os riscos do "binge drinking", especialmente direcionadas aos jovens, combinadas com o fortalecimento das redes de atenção à saúde mental, representam estratégias promissoras para a redução dos danos relacionados ao álcool no país.
Considerações finais
A análise dos dados globais de 2020 sobre consumo de álcool e prevalência de transtornos demonstra que a medida do consumo per capita é insuficiente para compreender e monitorar a prevalência de problemas relacionados ao álcool e que outros fatores são decisivos para se compreender os impactos da substância, como acesso a tratamentos, padrões de consumo e vulnerabilidades socioeconômicas. As estratégias mais eficazes para redução dos danos relacionados ao álcool devem, portanto, combinar medidas para modificação de padrões prejudiciais de consumo com a ampliação do acesso a serviços de diagnóstico e tratamento adequados, considerando as particularidades culturais e socioeconômicas de cada população.